O homem que cumprimentava as crianças
Filha de Florence, a professora de música Calu conta como era o executivo quando estava no “modo família”.
Sabe dizer como nasceu a paixão de Florence pelo mundo dos fertilizantes?
Eu não tenho uma memória, vamos dizer, racional, porque como filha que já participou disso desde sempre, ele nunca mencionou pra mim de onde nasceu a paixão. Acho que ela já vivia com ele na atitude, na ação, era uma coisa que fazia parte dele ao longo da nossa história. Ele sempre estava procurando estudar, trabalhar, envolvido com isso. E não só por isso. Ele era apaixonado por muitas coisas. Era apaixonado pela vida. Era bem eclético, fazia várias coisas, e isso era uma paixão como se fosse estrutural na vida dele. E quando ele estava na versão família aquilo ficava em stand by, mas sempre estava com algum livro na mão, estudando. E agora, quando entrou a tecnologia, ele começou a aprender a buscar [informações] através de computador, e-mail, essas coisas.
E como era a rotina de trabalho, o dia a dia dele?
Ele acordava e ia pro trabalho. Tomava café da manhã no trabalho.
Até o café da manhã era no trabalho?
Até. E quando ele voltava é que ia fazer os esportes. Ele tinha essa rotina de trabalho e prazer muito vinculada. Eu via isso pelas horas de almoço, pelas pessoas com quem ele se encontrava. Ele tinha uma rotina de sempre encontrar, numa data, determinado grupo, determinada pessoa, ele não nunca abandonava essa rotina que era de trabalho e ao mesmo tempo social, emocional, era tudo uma coisa só. Eu tenho a impressão que o meu pai não sofria para trabalhar, não falava: “Ai, agora vou ter que trabalhar”. Não, ele levava o trabalho pra casa e ia da casa pro trabalho com uma integridade, uma unidade.
Ouvi histórias de que ele tinha vários grupos, tipo confrarias, que se reunia com frequência com pessoas de determinadas áreas, e era sistemático, regular. Ele comentava sobre essas coisas, como era esse convívio?
A forma como ele comentava era bem mais simples do que a forma como algumas pessoas contam pra mim. Por exemplo, o contato que eu tive com o Ricardo [Tortorella, diretor-executivo da Anda] agora, no começo da semana, em que ele me contou dois almoços com meu pai. Eu fico sabendo mais dos detalhes, da vivência, através das outras pessoas do que dele mesmo. Ele só falava “almocei com não sei quem, encontrei com não sei quem”, sempre estava em contato com as pessoas, sempre tinha notícia de alguém. Eu sei que tinha pessoas que eram semanais, outras eram mensais. E quando meus filhos iam a São Paulo, ou mesmo eu, ele abria para a gente almoçar junto. Estar no escritório dele, pra todos nós, era uma sensação de porto seguro. Ele tinha esse lado acolhedor no próprio espaço profissional.
Ele gostava de música também, né, tocava violão etc.
Ele teve fases em que estudava mais, estudava menos, abandonava um pouco, voltava. Por último ele estava muito animado tocando o que já sabia tocar, e aprendendo a cantar. Resolveu fazer aulas de canto. Inclusive me mandava vídeo e pedia para dar bronca, dizendo “fala o que tá errado”. Mas a minha primeira visão era: nossa, que incrível, uma pessoa pegar o violão, pega o que sabe tocar e sair assim, agora vou cantar melhor, entendeu?. E eu falava as coisas positivas, como é o meu perfil, porque acredito que a música tem que ser ensinada dessa forma, primeiro com o elogio e depois trabalhando as técnicas e tal, mas ele queria que eu desse mais bronca. No fim começou a fazer aula de canto com uma professora especializada em canto mesmo. Sempre estava querendo aprender. Tenho uma fotografia, agora do último feriado, quando foram pro sítio, ele pegando uma rabeca, que é o violino caipira, o meu filho mostrando pra ele e ele com um gesto muito inteiro, muito integrado naquela sensação de tentar fazer aquele som, e o meu filho do lado ensinando, um jovem ali como mestre de um senhor completamente mergulhado na abertura para o aprendizado novo.
E sobre literatura? Ele tem um livro publicado e tem os textos do blog. Ficaram coisas a ser publicadas, produção dele que não chegou a sair?
Então, a gente está nesse turbilhão depois da morte dele, pensando no que tem que resolver pra ontem. E outro dia eu tive esse pensamento: nossa, as coisas que meu pai escreveu devem estar em algum lugar. No computador dele deve ter sim coisas a publicar, e vale a pena procurar. Acho que a fase da escrita a mão está toda digitalizada, mas achei um caderninho escrito a mão, coisa antiga, tenho que ver se é dele mesmo porque não tinha assinatura e não reconheci a letra. Preciso confirmar.
Quais foram os maiores desafios que seu pai enfrentou, tanto pessoal como profissionalmente?
Olha, eu diria que, começando pelo tempo da juventude, eu imagino que não tenha sido fácil pra ele quando meu avô perdeu uma fazenda que ele gostava muito. Esse foi um desafio que ele veio a tentar resgatar depois, com a herança da minha avó, e montou uma fazenda. Ele me convidou para ser sua parceira e eu aceitei, porque sou técnica agrícola, antes de ser professora de música. Outro desafio muito forte foi na separação com a minha mãe, quando ele teve uma perda financeira muito grande e logo em seguida a empresa dele, a Cobrin, pediu concordata. Ele passou por um momento bem fundo do poço mesmo. E nesse momento eu até ofereci ajuda, mas ele nunca demandou de mim, muito pelo contrário, ele sempre me apoiou. Mas isso fez uma aliança ali, sabe, e uma vez comentei com ele que pra mim a maior herança que ele deixava era esse exemplo, essa capacidade de sair do nada e refazer, reconstruir uma vida a partir de uma situação muito fragilizada, com a cabeça erguida e de fato reconstruir. Foi quando a AMA Brasil entrou na vida dele. E ali, junto com a AMA, que pelo que me contou estava sem muita função, eles foram se dando apoio e função um ao outro e se reerguendo, e hoje pode-se dizer que é uma história de sucesso.
Você pode compartilhar uma história curiosa do seu pai, uma cena que sempre venha à memória, ele atuando em algo que era específico dele, que se possa dizer isso aqui é típico do Carlos Florence?
Ele gostava muito de criança. Sempre cumprimentava as crianças. Em qualquer lugar que estivesse. E as crianças também cumprimentavam ele. Eles se olhavam e se cumprimentavam, seja no restaurante, no clube, em qualquer lugar. E quando ele teve os netos ficou completamente apaixonado, se transformou, e mudou a vida dele inclusive.
O seu pai era uma liderança nacional do setor, mas não tinha vaidades ou ambições políticas. Ao contrário, os depoimentos dados para essa série destacam a sua postura de humildade.
A humildade é um ponto de referência, porque de fato ele não trazia essa importância que ele tinha, como informação, ele trazia como qualidade, vamos dizer assim, na hora que ele ia descrever a importância de um tema, de uma batalha, de uma luta, de uma meta. Aí você via que ali o mais importante era o tema, a batalha, a luta, a meta, e não ele naquilo. E mesmo que estivesse contando uma conquista, ele não era o protagonista da cena, era sempre o fato em si. Por exemplo, essa história de ir pra Brasília e tal, ele não deixava transparecer com quem ele estava convivendo, qual o nível da participação dele. A gente ficava com a informação do aeroporto, da chegada, do hotel, do fui e voltei e está tudo bem.