Maria do Carmo2023-03-28T10:35:51+00:00

PCF       Edital      Sobre Carlos Florence

A ternura em pessoa

Maria do Carmo, a Tuca, companheira de Florence, fala sobre como era conviver com um homem profundamente conectado à vida, ao mesmo tempo intenso e sereno

Como era o Florence na rotina de trabalho?

Ele era con-cen-tra-dérrimo. Nos últimos tempos ele passou a trabalhar em casa. E eu ficava impressionada porque embora fosse uma casa muito tranquila, era só ele e eu, ele sumia. Quando eu digo que ele era concentrado é porque ele saía do ar quando estava trabalhando. E gostava muito do que fazia, isso é que é importante.

Eu soube que ele continuava estudando, né? Estava estudando música, canto, filosofia e coisas assim. Ele se interessava por tudo. Como era isso?

Música sem dúvida, filosofia também. Ele era uma pessoa extremamente, no bom sentido da palavra, viva, sabe? Era muito ligado nas coisas, mas aparentemente uma pessoa muito tranquila. Era lá dentro a força. Uma força admirável.

Ele participava de grupos de estudo…

Também. Mas o mais importante era ele e o mundo, que era uma conexão muito forte. Ele com tudo no mundo, mas de um modo, aparentemente, tranquilo. Acho que ele se matava um pouco por dentro… Mas o que eu mais lembro dele é da ligação interna, lá dentro, que ele tinha com a vida, com o mundo.

Então era uma pessoa preocupada com as questões sociais, políticas e tal, acompanhava noticiário?

É, isso também, assim, como um bom cidadão de classe média alta, instruído. Mas não era isso que me chamava a atenção. Isso ele fazia, mas eu também faço. Ele tinha uma conexão muito profunda com a vida. Era bonito de ver. Enfim, eu sou uma senhora saudosa.

E a literatura dele, a relação dele com a escrita, com os livros?

Sim, mas isso que eu digo: isso me chamava menos a atenção. Ele lia como uma pessoa instruída, do nível dele, gostando do assunto, leria. Se não estou sendo clara é porque o assunto não é fácil.

Sim, sim. E ele conversava, discutia essas questões com a senhora? Pergunto isso porque todos me disseram que ele era intimista, não se abria muito.

É, não se abria muito, mas como eu era o único personagem disponível, então de vez em quando se abria. Falava, mas falava do jeito tranquilo que ele tinha. Mas en passant, também não assim “que bom que eu tenho uma mulher que me ouve”. Não, sob hipótese alguma. “Que bom que eu tenho uma mulher, ponto”. Agora, de vez em quando explodia nele algum comentário, um comentário cheio de ternura com a vida em geral.

E dentro dessa eterna curiosidade e dessa ligação com o mundo, com a vida, como a senhora fala, o que mais o preocupava?

[Longo silêncio]. Estou pensando muito porque não sei dizer o que “mais” o preocupava. [Mais silêncio]. Ele era pouco dado a externar pra mim preocupações, ou dores. [Pausa] Mas como para qualquer ser humano, como já lhe disse, de classe média alta com alguma instrução, a situação do país não deixa ninguém calmo, né? Todos nós. Então entrava isso. Mas não sei dizer, no mais fundo dele, em sendo uma pessoa fechada como ele era, qual era o vínculo mais forte com a dor

E o que mais o alegrava?

Netos.

É?

Muito. Era uma ternura ele com os netos. E acho que toda essa vida intelectual alegra, né? A pessoa tem sempre coisa nova pra ver, e isso ele vivia intensamente. E os netos eram muito queridos dele.

Mas a vida intelectual também traz pessimismo às vezes, mas me parece que ele era um otimista, pelo que ouvi dos depoimentos até agora.

É, eu não o sentia pessimista. Não o sentia pessimista. Nem otimista. Uma pessoa aberta pra vida.

Realista, digamos assim.

É, acho que sim. Realista. É engraçado, tem toda uma pretensão de quem se diz realista, ele não tinha pretensão, mas acho que era uma pessoa que enxergava o mundo, do modo dele, bem. Não que seja um mundo lindo-maravilhoso, mas não era fantasioso. Mas era uma relação boa. Falava pouco nisso. Aliás, falava pouco em geral. Deixa muita saudade.

E também não se posicionava politicamente, né?

Não. Não. Acho que política era das suas menores preocupações. Ele deixava à parte o mundo político como um mundo dispensável. Acho que é isso. Você o conheceu?

Não, pessoalmente, não. Mas sei que foi uma pessoa que marcou os outros com quem conviveu.

Sem dúvida. Você disse uma coisa certa. Acho que ele marcava muito, e de um modo… Ele não fazia força pra marcar, isso é que era legal. As pessoas que ele marcava, ele não tinha o menor comando disso, era o jeito dele ser, um jeito até meio alheio, que encantava muita gente. Eu tive muita oportunidade de conviver com ele porque nós passamos um bom pedaço da nossa vida no sítio. Então no fim de semana era eu, ele e o mato. Bem, eu sou uma fã.