O ateu mais cristão que conhecemos
Rafael Florence, neto de Carlos, fala da visão humanista do avô e de sua paixão por Heidegger.
Rafael, todas as pessoas que entrevistei disseram que Carlos Florence não falava de política, que evitava, inclusive nos grupos de WhatsApp dos amigos, quando começavam a discutir política, ele ou silenciava ou dizia que aquele grupo não era para isso. Mas sua mãe me disse que contigo ele tinha uma discussão sobre questões mais filosóficas e políticas.
Sim.
Porque o trabalho dele me levava a crer que ele tivesse uma visão de país, por exemplo. Mas todos disseram que não, que esse debate não ocorria. Então quero saber de ti como era essa conversa com ele sobre questões político-filosóficas.
Olha, o meu vô era muito discreto. E sempre prezava por um bom relacionamento com quem quer que fosse, por boas trocas. Política para ele era inferior, no quesito de importância, nas relações entre as pessoas. E ele trabalhava com isso. Então a boa relação sempre estava acima das convicções, pra ele. Eu creio que ele sentia que conseguia fazer bem mais coisas através disso, das boas relações, do que das convicções e teorias que se batiam. Era mais importante uma boa relação do que uma concordância teórica. E ele também não fazia questão de convencer as pessoas. Então ele não daria um bom político, nesse sentido, e nem almejava.
Mas e contigo, o que ele falava a respeito desse tema?
As conversas que eu tive com ele me ajudaram a entender o processo econômico, e o processo político também, de uma forma um pouco mais viva do que eu via antes. Eu via de uma forma um pouco teórica. Ele via a economia como algo fluido, onde naturalmente interesses surgiam, não necessariamente benéficos ou maléficos. Sempre que eu, por exemplo, questionava algo no sentido econômico, por achar que tinha que ter uma atuação mais forte de algum lado, um controle, ele questionava: por quem vai ser feito esse controle, como isso vai se estabelecer? Sempre vai ter um interesse, então não dá pra escolher alguém para controlar algo.
Dá pra dizer que ele tinha concepção mais liberal da economia?
É, era uma concepção mais liberal.
Interessante porque o movimento de organização dessas entidades começou durante a Ditadura Militar, e eu perguntei como era o processo de regulação do setor, e me disseram que houve momentos de mais regulação e de menos regulação. E eles atuavam nesse meio fazendo contatos com todas das forças, então eu imaginava que houvesse um debate mais ideológico, mas tudo indica que não. Eles eram mais pragmáticos, né?
Eu creio que sim, mas sinceramente, a minha experiência sobre a atuação do meu vô no setor é limitada. Eu sou bem novo e comecei a entender um pouco disso há poucos anos atrás.
Claro. Então conte um pouco sobre os seus longos diálogos com seu avô.
Eu tive realmente o privilégio de ter várias conversas com meu avô, e conversas que ele chegava a dizer que eram únicas. Ao mesmo tempo em que ele era ateu — e eu nem sei se ele, justamente para não causar discórdia, saía dizendo isso por aí.
Normalmente os ateus somos assim.
Mas no livro dele também tem, então de certa forma ele levou isso a público. Ao mesmo tempo, eu, minha mãe e meus irmãos, a gente costuma dizer que ele era o ateu mais cristão que a gente conhecia, no sentido dos princípios pessoais dele, de relacionamento, de lida com as pessoas. Na capacidade de ser muito amável com qualquer um, de acolher as diferenças, de não fazer questão de entrar em embates. Eu tenho a impressão de que ele reconhece que os embates hoje em dia são muito mais teóricos do que reais. Apesar de ele adorar também a teoria, na vivência dele acho que essa teoria não era superior à importância do relacionamento que ali se estabelecia. É isso: tinha essa teoria de ateu e uma vivência que era um grande exemplo de um cristão.
Na prática ele estava demonstrando que não há monopólio do humanismo.
Demonstrando mesmo. E aí nesse sentido eu acho que isso se vincula com sua pergunta da atuação dele ser mais ideológica ou mais pragmática. Existe uma analogia aí. Da mesma forma que ele se preocupava mais com a relação interpessoal do que com a teoria, se a teoria dele batia com a teoria da outra pessoa ele não fazia questão de entrar muito nisso, ao mesmo tempo a atuação dele não era baseada em teoria. Então não era no âmbito ideológico, era justamente no âmbito pragmático, e o que ele acessava, onde ele podia atuar, era justamente nas relações, e ele tinha muita competência pra isso. Ele era mais do fazer, ao mesmo tempo que era muito do pensar também. Estudava de tudo, lia de tudo, adorava filosofia. Faleceu deixando cadeira vazia em mais de um grupo de estudo de Heidegger.
Poxa, essa é nova. Grupo de estudo de Heidegger?
Estava louco pelo Heidegger. Nos últimos três anos. Antes disso participou de cursos sobre Freud, um voltado especificamente à filosofia sob a visão freudiana. E Nietzsche, também lia Nietzsche. Sartre. Falava que brigava com “O ser e o nada” há 15 anos e continuava apanhando um pouco.
Curioso que isso não tenha aparecido nas outras entrevistas. Ele só conversava com você sobre isso?
Conversava. A gente tinha boas trocas. Claro que com a devida limitação de não filósofos, que gostam da área, e eu muito mais novo do que ele. Ele andava estudando fenomenologia, bastante, através do Heidegger, e eu trazia pra ele o que eu estudo e o que tenho levado como teoria e prática, que é a antroposofia, que tem um caráter não materialista. Mesmo sendo materialista convicto, ateu, ele estava aberto ao diálogo comigo, e também era um grande privilégio pra mim poder estar falando com alguém que tem outras concepções mas ao mesmo tempo uma abertura muito grande. Então a gente estabelecia várias trocas muito ricas.
Nos últimos anos um dos passatempos preferidos dele nos finais de semana era ir pra fazenda contigo. Era só pra curtir ou entravam na lida do campo?
O meu avô estava numa idade que não dava pra entrar na lida.
Mas ele andava a cavalo e gostava de “correr cerca”, como se diz.
É uma das coisas que eu mais vou sentir saudades. Essas viagens pra fazenda com ele. Pra vida inteira. Era bem do ritmo, era parecido o que a gente fazia. Saía num horário parecido de São Paulo, parava sempre no mesmo lugar pra comer, fazia um mercado, e no dia seguinte, das 7 da manhã às 11 horas era em cima do cavalo, com uma pausa para um lanche. Então, quatro horas de cavalgada andando pela fazenda, olhando o gado, e ele só parava porque tinha que voltar. As conversas dele com o Vaninho, que era o funcionário que tocava a fazenda, olhando o gado e contando coisas que aconteceram, eu sentia a satisfação enorme do meu vô em estar lá, e eu do lado e presenciando a relação dele com o Vaninho. O Vaninho inclusive está na dedicatória do livro dele. O meu vô era muito de ouvir, e o Vaninho muito de falar.
Aí dava certo.
Dava muito certo. Ele aprendendo muito com o Vaninho assim, e o Vaninho aprendendo com ele. Ele adorava ver a praticidade do Vaninho, e me dizia: “Vou te falar, o Vaninho é uma das pessoas mais inteligentes que eu conheço. Pra mim, inteligência é resolver problemas”. E realmente, Vaninho tem essa competência, magistralmente. Então meu avô foi isso. A convivência em si, a sensação de estar feliz só de estar ao lado dele, é coisa que vai deixar muita saudade.