Trabalho, livros e humanidade
Doralice Pereira, a Dora, secretária de Florence na AMA, fala dos 24 anos de aprendizado com o chefe
Você conviveu com Florence aí na associação durante bastante tempo, certo?
Sim, foram quase 24 anos de trabalho
E o que você pode falar desse período? Como era o Florence como chefe
É até difícil falar do seu Florence. Ele foi pra mim tão incrível como pessoa, como chefe. Aprendi muito com ele. Tanto no profissional como no pessoal. Principalmente, até, no pessoal. Mas e difícil definir. Só quem conviveu com seu Florence consegue entender o que eu gostaria de passar. Como profissional, por exemplo, era uma pessoa incansável. Amava trabalhar aqui na AMA, nunca estava cansado. Todos os dias chegava bem humorado. Mesmo quando não estava bem de saúde. Já fez até cirurgia em que saiu do centro cirúrgico e veio pra AMA
Sério isso?
Verdade. E ele era muito amigo. Seu Florence era uma pessoa que você pode dizer assim: esse é meu amigo. E era amigo de todo mundo, nunca criticava ninguém, nunca julgava ninguém. E às vezes se alguém falasse alguma coisa, ele tinha um jeito de tentar… Sabe aquela frase do “tapa com luva de pelica”
Sei.
Ele era desse jeito. Mas tinha toda uma diplomacia pra falar com as pessoas. Era muito simples, uma pessoa humilde, que todo mundo gostava. Eu não sei que palavras usar para definir o seu Florence.
Mas você já definiu bem.
É, eu só sei que ele faz muita falta. Fico até emocionada quando lembro dele, porque faz muita falta. Na época da pandemia ele superou as minhas expectativas. Eu pensei assim: nossa, e agora, o seu Florence está na casa dele e eu na minha casa, como é que a gente vai conseguir fazer as coisas? Meu Deus, com 82 anos! Mas ele se dedicou tanto, tanto, a aprender, porque ele não mexia com computador. Da noite pro dia teve que aprender tudo, por exemplo, participar de reunião, dar entrevista, tudo através da internet. Então isso pra mim foi uma superação muito grande da parte dele que eu achei incrível. Falei: realmente é uma pessoa que gosta do que faz, pra se dedicar com tanto amor e carinho. Me ligava, passava mensagem tarde da noite. Eu falava: “Seu Florence, o senhor tem que dormir, descansar”. E ele: “Não, mas eu não consigo, e nesse meio tempo eu fico lendo”. Porque ele lia muito, né? Gostava de ler, gostava de escrever. Era extremamente culto. E uma pessoa ativa, ativa. Todos os dias ele ia nadar, por exemplo. E todo final de tarde, depois do expediente, eu na minha casa e ele na casa dele, me ligava e perguntava: “Dora, posso ir nadar? Já terminei meu trabalho aqui, posso ir nadar? E você, já fez sua caminhada?”. Então ele se preocupava com as pessoas, não era só comigo, não. Era com todo mundo, com as famílias, com os amigos. Você não podia falar que fulano de tal está precisando de tal coisa, está com algum problema, que ele já ia tentar algum jeito, e não te falava nada na hora, mas depois vinha com alternativa, te surpreendia, estava sempre surpreendendo. Isso além de ser uma pessoa dedicada ao trabalho. E defendia o setor de misturadores com unhas e dentes. Ficava sempre buscando alternativa, sabe? Todos os problemas que chegavam até a AMA, ele achava um jeito de resolver. Sempre. Se não soubesse a resposta na hora, dizia pra pessoa: “Não sei te dizer agora, mas vou atrás e te retorno”. Nunca deixou de responder um e-mail, qualquer coisa que fosse. Mesmo que não fosse assunto da AMA
Você lembra de algum episódio que possa compartilhar com as pessoas?
Lembro que ele lia, tipo quatro, cinco livros de uma vez só. E escrevia bastante. E às vezes, como o raciocínio era muito rápido, escrevia algumas coisas que eu não entendia. E como eu tinha que passar isso pro computador, ia até ele e falava: “Seu Florence, eu não entendi o que o senhor escreveu aqui”.
Mas era manuscrito?
Sim, tudo. Tudo o que fazia, tudo que ia pro computador passava pelas mãos dele primeiro. Então quando eu falava que não entendia, ele dizia: “Dora, mas você não precisa entender, porque muitas vezes nem eu entendo o que escrevo”. E realmente, às vezes ele ia ler e não entendia. Falava: “Não, deixa essa parte aí que depois eu escrevo de novo”. Era assim. Eu acompanhei todo o processo do livro dele. Eu ajudei a passar pro computador, foi um período bacana, ele se dedicou muito, estava com muita vontade de publicar esse livro.
Tudo passava por ti? Digitava os textos dele, inclusive as crônicas?
Tudo. Ainda tenho aqui no computador. Tudo passava pela minha mão. Ele escrevia no papel e eu passava pro computador.
Mudando de assunto: o que você sabe sobre os vários grupos dos quais Florence participava?
Olha, seu Florence foi uma pessoa que fazia questão de manter as amizades. Por exemplo: ele tinha diversos grupos além dos grupos de estudo. Tinha um do pessoal de quando ele fez a faculdade, lá de mil novecentos e cinquenta e alguma coisa. Eles se reuniam uma vez por ano. Tinha o pessoal do Clube Pinheiros, um dia no mês, todo mês, se encontravam. Tinha outro pessoal que ele chamava de confraria. Eu só não sei em que época essas pessoas fizeram parte da vida dele.
Estava sempre rodeado de gente.
Sim. E todo aniversário de parente, amigo ou colega ele ligava. Tinha mania de ligar pra todo mundo. Sempre me pedia para fazer agenda dos aniversariantes do mês. Mas não gostava de festa pra ele. Tipo Natal e Ano Novo ele passava sozinho. Mas por outro lado ele tinha esse jeito humano de tratar as pessoas, que é uma coisa que não tem muita explicação, porque, por exemplo, seu Florence não tinha nenhuma religião, mas era tão grandioso que ultrapassava tudo isso. Aí você fala, meu, às vezes uma pessoa que se diz tão religiosa não tem essa bondade, essa humildade. Então era muito bom conversar com ele, sempre estava ensinando alguma coisa pra gente, principalmente na parte humana. Aprendi a ver o próximo de uma outra maneira.
E quais eram suas preferências?
Olha, ele evitava qualquer tipo de assunto que pudesse gerar conflito. Então não falava de política, não falava de futebol.
Mas não torcia pra nenhum time?
Não sei, pode ser que tivesse um time, mas não sei dizer.
É, durante todo esse tempo de convívio, se você não soube, é porque ele não falava nisso. Mas nem durante a Copa do Mundo, por exemplo?
Não, era bem fechado nesses assuntos.
Era centrado no trabalho.
Exatamente. O tempo que tinha disponível, ele ficava lendo.
Você sabe o que ele lia? Lembra de algum livro que possa citar?
Um livro que ele sempre falava era “O ser e o nada”.
Ah, do Sartre. Filosofia pura.
A mesa dele estava sempre cheia de livros. Lia jornal, lia de tudo. Sei que gostava de livros de poesia também. O resto era trabalho. De todo evento ou atividade que fosse convidado, participava. Ia a homenagens, posse de diretoria, reuniões. Quando falecia alguém que ele conhecia, fazia questão de ir no velório e na missa de sétimo dia. Não faltava a nada disso. Só não gostava muito, pra falar a verdade, de festa.
Era uma agenda intensa, então.
Era. Participava de vários grupos de trabalho, na Anda, na Fiesp, no Ministério da Agricultura. Era bem atuante.
E sempre de bom humor?
Não se irritava com nada. Nunca vi seu Florence irritado. Às vezes eu percebia ele tipo chateado. Mas nunca esboçava sinal de que estivesse bravo. Nenhuma palavra, não deixava transparecer pra ninguém. Quando eu percebia que ele não conseguia alguma coisa, eu perguntava: “Seu Florence, o que aconteceu?”. Ela olhava pra mim e falava: “Dora, acho que estou ficando velho. Não consigo mais convencer ninguém”.