Um bom soldado para qualquer batalha
George Wagner, vice-presidente da Anda, fala do convívio de mais de 40 anos com Florence
Gostaríamos que o senhor falasse sobre o legado maior de Carlos Florence para o setor de fertilizantes, o significado disso e o que ele deixa para as novas gerações.
O Florence era uma pessoa ímpar, e dentre as várias qualidades dele, uma delas era a de ser um cara dinâmico e persistente. Então, ele contribuiu muito para defender os interesses da classe dos misturadores de adubos e, consequentemente, do setor de fertilizantes do Brasil. Tinha um conhecimento profundo do setor de fertilizantes, tanto na parte que concerne à produção quanto na parte que concerne à distribuição. Ele tinha um relacionamento muito bom com todo esse segmento do setor de fertilizantes, o que possibilitou uma contribuição ímpar na construção de forma de operar. Tinha bom relacionamento com as autoridades, com todos os misturadores que participavam da entidade. O legado dele foi muito mais no sentido de construir e preservar o elo importante dessa cadeia, e pulverizar a distribuição de fertilizantes no Brasil. Esse foi o grande mérito do Florence. E fez isso de uma forma, vamos dizer, leal. Desconheço que tivesse inimigos nesse período de convivência com ele. E defendia com garra seus pontos de vista. Então construiu, com essa sinceridade, com essa forma de ser, um canal muito aberto para troca de informações e experiências. A grande importância dele vai nesse ponto: foi um articulador do setor.
A organização de pools de empresas para a compra de insumos é um exemplo dessa luta?
Sem dúvida nenhuma. Nesses mais de 40 anos de convivência com Florence, inclusive dentro da mesma entidade, permitiu, em momentos distintos do setor e da economia, que nos organizássemos na formação desses pools. O Florence foi peça-chave nessa interlocução. Há 40 anos atrás nós tínhamos meia dúzia de empresas que representavam 60%, 70% do mercado. E existia um grande número de pequenos misturadores esparramados pelo Brasil inteiro. Na época da privatização da Fosfertil, isso acabou criando mecanismos e necessidades de organizarmos o suprimento e o acesso dessas pequenas empresas misturadoras ao seu suprimento. Isso envolveu grandes discussões, grandes demandas jurídicas, com Florence à frente. Nós trabalhamos incessantemente no sentido de proteção do segmento misturador. Entendíamos que havia um diferencial muito grande no que se referia a esquemas de taxação, esquemas de impostos que acabavam, de uma maneira ou de outra, privilegiando o acesso de determinados grupos à matéria-prima. Foi uma briga ferrenha. Então esse pool de compras foi importante porque a política de preços praticada pelos fornecedores levava em conta regularidade de aquisição e volume de aquisição. Misturadores isolados dificilmente conseguiriam cumprir com essas exigências. Quando se associaram em pool, tiveram condições de atender às exigências, e acabaram tendo condições quase idênticas à dos grandes players do setor. Permitiu acesso em condições competitivas e foi muito importante dentro da entidade.
Então não havia uma regulamentação mínima no setor, era uma luta das entidades associativas? O governo não interferia?
Teve várias etapas nessa longa trajetória. Etapas de maior interferência, menos interferência. Depois existiu uma perda gradativa, por razões diversas, da participação da indústria nacional no suprimento das demandas. Nós podemos dizer que o agronegócio brasileiro demandou muito mais fertilizantes do que a indústria teve capacidade de atender. E hoje participa com menos ainda, percentualmente e em volume. Daí a razão da existência de planos vários governos no sentido de fomentar o dinamismo da indústria nacional de fertilizantes. E o potencial do Brasil em suprir alimentos para o mundo acabou despertando o interesse de vários players internacionais, que se deslocaram para cá e isso ajudou a formar um novo ciclo. E o Florence participou disso intensamente. Participou, viveu e trilhou por esses caminhos de uma maneira brilhante, no sentido de conseguir não só de levar, através da entidade, os pontos de vista que eram de interesse dos pequenos misturadores, como de levar isso a um nível de credibilidade muito alto. Isso contribuiu junto às autoridades, junto aos pares do setor, para a consolidação de um marco regulatório que permite a indústria brasileira entregar ao agronegócio cerca de 44 milhões de toneladas de fertilizantes, como vai ser o caso deste ano, com relativa segurança. Hoje nós passamos por um período mais crítico em função de razões geoeconômicas, comprometimentos internacionais e tal, que se descortina uma nova batalha no sentido de melhor entender os interesses, de melhor acolher um plano que satisfaça as necessidades da agricultura brasileira.
Florence manifestava preocupações em relação ao rumo que estava tomando o setor nesses últimos anos, em que ele já estava um tanto mais afastado da liderança?
Não, o Florence nunca esteve afastado da liderança. Sempre contribuiu prestando seus serviços, com total liberdade de expressão de pensamentos, de propostas. A preocupação sempre existiu e continua presente, não só no sentido de entender como fica o futuro das empresas menores de fertilizantes na distribuição desse insumo ao agronegócio, como também da sua continuidade. Essa preocupação a entidade sempre teve, porque você começa a trabalhar com níveis de competitividade bastante distintos. Tem empresas mineradoras, produtoras e distribuidoras, e as empresas que compõem nossa entidade acabam participando de um elo só. Isso deve estar gerando preocupações hoje com relação, por exemplo, a suprimento, rentabilidade, continuidade operacional, aspectos logísticos que ganham importância a cada instante, em que pese a grande evolução do Brasil nesse sentido.
A palavra que mais ouvi em todos esses depoimentos é “agregador”. Um sujeito agregador e ao mesmo tempo humilde, que não tinha pretensões de liderança, de carreira.
É exatamente isso. Ao longo do tempo Florence foi construindo e adquirindo conhecimento que poucos teriam como absorver. Ele começou a trabalhar no setor há muitos anos e acumulou uma experiência ímpar. No trato com as entidades, a defesa de pontos de vista, a discussão de qualquer assunto que fosse de interesse desse grupo de misturadores, fez com que fosse uma pessoa respeitada pelo setor inteiro. E ao ter esse respeito ele acabou conseguindo transmitir seus pontos de vista e influenciar bastante o modelo que existe hoje, de uma forma que poucos o fizeram. Problemas que extrapolavam o simples interesse das empresas pequenas ou médias eram tratadas com a mesma seriedade e com a mesma dedicação em qualquer fórum. Não existindo conflito de interesse, o Florence era um bom soldado para qualquer exército, para qualquer batalha, independente de serem pequenos ou grandes.
E o setor também não tinha interesse em construir um liderança política nacional, para defender suas pautas no Congresso, por exemplo?
Não. Existem regionalmente algumas ligações, alguns relacionamentos nesse sentido, mas não que fossem abordados em nível nacional. A forma como essas soluções eram encaminhadas era muito mais por contatos com as lideranças já existentes, naturalmente com aquelas que estavam mais ligadas ao agronegócio. Isso no Brasil todo.
Bom, tem mais alguma coisa que o senhor gostaria de destacar a respeito desta história?
Veja, eu tenho uma admiração, e continuo tendo apesar do meu amigo já ter mudado de plano, muito grande. E acho que sem dúvida nenhuma vai fazer falta como articulador. Eu participei, mesmo sendo de uma empresa regional, pequena, de praticamente todas as entidades do setor, presidi quase todas. O Florence sempre foi um amigo, um conselheiro e um grande articulador, uma pessoa que muito auxiliou nesse processo inteiro, do processo de construção e de melhoramento da estrutura do setor. Agora, o mais importante é preservar a autonomia e a identidade do agronegócio brasileiro, com segurança e sem dependência externa, que amanhã possa eventualmente ameaçar esse desempenho que tão bem tem sido demonstrado até agora. Então essas brigas que estão existindo mundo afora, essas questões geopolíticas, devem ser muito bem analisadas. E aí sim, o Florence fará falta em participar desses grupos de trabalho, essas mesas de almoço, e contribuir com suas observações e ideias.