As múltiplas facetas do professor
O advogado José de Paula Monteiro Neto conta histórias saborosas vividas ao lado de Florence
Como começou sua amizade com Florence?
Eu o conhecia de nome muito antes de conhecê-lo pessoalmente, porque fui diretor jurídico da Ultrafertil, da qual ele era cliente através de uma empresa chamada Cobrin. Então eu só o conhecia formalmente através de negociações de contrato de compra e venda de matéria-prima, fertilizantes, e o dia a dia empresarial. Nunca havia visto o Florence pessoalmente. Depois que deixei essa empresa, passei a advogar para o setor de fertilizantes. E aí sim, nós nos reunimos, ele me fez o convite para advogar para a AMA Brasil. Lá eu fui o causídico por longos anos. Nesse período nós nos aproximamos, quando ele já era diretor executivo da AMA. Aí me vem à mente e aflora com muita vivacidade essa característica dele de uma pessoa aglutinadora. Ele tinha a capacidade de reunir os amigos em torno dele ou em torno de uma ideia, de um propósito, um objetivo, com muita facilidade. E me impressionava porque era uma pessoa de lhaneza no trato, era uma pessoa que mostrava uma humildade em contraponto ao grande homem culto que ele era. Era um homem estudioso, tinha uma cultura geral muito grande, e isso me impressionava muito porque normalmente a pessoa que tem muitos dons tem também uma certa vaidade. E ele não. Era uma pessoa muito simples. Então nós começamos a nos reunir uma vez por mês num determinado restaurante aí. A gente marcava, um grupo de sete a nove amigos, todos ligados ao setor de fertilizantes. Aposentados, da ativa, jovens, velhos, mas todo mundo com esse propósito de manter viva a tradição do fertilizante, da nossa história. Era muito gostoso, uma confraria, e ali a gente falava de tudo. Criou-se uma tradição. E além do núcleo duro de sete a nove colegas, a gente fazia convites. A gente chamava um diretor de empresa, um gerente, um colega de trabalho antigo de cada um do grupo. E aí foi muito rico tudo isso, porque a gente mantinha sempre viva essa história toda do setor propriamente dito.
O senhor pode contar alguma história marcante desses encontros?
Vou contar uma pérola: em março de cada ano a gente fazia uma aposta entre o grupo, sobre quanto seria a quantidade de toneladas que seriam comercializadas pelo setor naquele ano. Cada um dava seu número, o Florence fazia uma ata e colocava o número de cada um, e quem ganhasse ficava sem pagar os almoços no ano seguinte.
Poxa, que bacana!
É, era muito gostoso, né, porque todo mundo tinha uma certa ideia do faturamento do setor e da quantidade que seria comercializada, então o número era muito próximo um do outro, mas sempre um levava. Essa história me aflora como uma coisa muito boa desse período.
Mas sempre tinha acertador, ou raramente alguém acertava o número? Porque é difícil…
Sempre um ganhava, o que se aproximasse mais do número real. Em dezembro fechava o balanço das empresas e a gente tinha o número oficial. O que aproximasse mais do número oficial era o vencedor. E o Florence às vezes ganhava, às vezes não. A gente falava que ele era um concorrente perigoso, porque estava muito mais por dentro das possibilidades, das expectativas, do que a gente.
Ele acertava mais do que o restante do grupo?
É, nesses 14 anos ele teve mais sucesso do que a gente, mas também errou e perdeu, e teve que pagar o almoço pros demais. Esse é um lado dele que me preza muito lembrar. Amigos, desinteressados, não tínhamos nenhum propósito político, nada.
E no plano artístico?
É, outra faceta que me impressionou muito, por que eu, como advogado, também gosto muito de literatura, gosto muito de leitura, faço parte de clube de livros, foi há uns dez anos atrás, quando o Carlos Florence me procurou, e eu estranhei a pergunta dele: se eu conhecia algum mestre na língua portuguesa. Eu falei: é para algum neto seu? E ele: não, eu que quero aprimorar o meu vernáculo, quero voltar a estudar português, porque acho que houve muita coisa nesse período que eu fiquei um pouco longe. Vou começar a escrever, e eu queria dominar o vernáculo.
Só a palavra vernáculo já diz muito dele.
Já diz muito. Aí fiz uma pesquisa no mercado e indiquei duas ou três profissionais para ele escolher. O Florence naquela época devia ter seus 70 anos. A vontade dele, naquela altura da vida, de dizer: vou por em dia meus conhecimentos da língua pátria, da língua mãe. E assim ele fez. E depois, com o tempo, nos brindou muitos anos com publicações, mensalmente.
Tinha um blog, né?
Exatamente. Escrevia artigos muito interessantes, até irônicos, com muito humor, muita cultura local. Ele mandava pra gente habitualmente, e publicava em jornais regionais. Isso me chamou atenção porque era até um pouco árido os textos dele.
Não era para qualquer leitor, não.
Exatamente. Então era um tal de ame-o ou odeie-o, porque era uma leitura canalizada para um tipo de leitor. Mas não deixa de ter mérito porque ele desenvolvia textos brilhantes regionais, né?
Tinha uma erudição também por trás daquilo. Ele fazia referências a personagens da história da literatura, da mitologia.
Exatamente. Você pôs o dedo no âmago da questão. Eram textos simples, falava de saci-pererê, de pescaria, do cavalo selvagem, da lua batendo na casa, mas tudo tinha um subtexto de cultura, de erudição, de ensinamento, é verdade. Tinha textos em latim. E depois tudo foi coroado com um livro que ele lançou, se não me engano, no Conjunto Nacional. Esse livro eu fui um dos que estimulou muito, porque eu acho que ele tinha tanto texto esparso, avulso, e falei: consolida isso e publica. E foi muito legal porque foi uma noite especial aquela. Ele fez esse evento no mesmo dia em que haveria o coquetel do setor de fertilizantes na Fiesp, que a gente faz anualmente em dezembro. Então tinha muita gente de fora, associados da Anda e da AMA, que aproveitaram e foram lá. Foi um congraçamento maravilhoso.
Mas ele deixa também textos inéditos, que não chegaram a ser publicados. O senhor conhece isso, tem ideia de que possa vir à luz ainda?
Ele escrevia bastante, segundo me dizia. Principalmente aos finais de semana, que eram sagrados pra ele. Não ficava em São Paulo na maioria dos fins de semana. Adorava ir com um dos netos para a propriedade rural. Aliás, se eu tivesse que falar do que o Florence mais gostava na vida, acho que era da vida rural. Essa lida do pastoreio, da ordenha de vacas. Ele falava que gostava muito de correr cerca. Depois disso vinha o lado profissional, que ele tinha uma responsabilidade extranormal. Era obcecado nessa questão de organização do trabalho. Era um profundo conhecedor do setor. Tanto que o apelido dele era “professor”. Quando a gente entrava em matéria da área, a gente falava: o professor conhece. Ele conhecia bem a área química, a área de fertilizantes, a área do mercado em si, e toda essa experiência ele conseguiu de alguma forma espargir, divulgar pra nós todos. Por isso que essas reuniões mensais nossas eram sempre muito produtivas. Não existe reunião em que você saia menor do que quando entrou. Toda vez a gente saía melhor depois de passar uma tarde lá batendo papo. E mais uma faceta dele: nós todos gostávamos de tomar caipirinha nesse almoço, o Florence não tomava. Ele tinha um problema bem limitante de estômago, e perseverava nessa preocupação com a saúde.
Mas era um bom prato?
Comedido, comedido. E metódico: determinado horário ele falava “tenho que ir embora”. Era sempre às sextas-feiras, mas voltava às atividades e era o primeiro a puxar a conta. Estou contando isso porque retrata a personalidade dele, uma pessoa organizada, metódico nas suas coisas.
O dr. Callil nos contou que o grupo se reunia no restaurante ao lado do antigo Hotel Ca’do’Oro. Era o mesmo grupo?
Não. Esse é outro grupo. Mas o nosso, coincidentemente, era o Florence que organizava, era também ao lado do Hotel Ca’do’Oro. Era um restaurante italiano. Eu sei que ele participava de mais duas confrarias.
Uma pessoa com essa projeção, com essa capacidade de articulação etc., não pensava em fazer carreira política, não recebeu convite para tal?
A política fazia parte das nossas conversas, obviamente, a política partidária inclusive, sobre a situação do Brasil, o lado econômico decorrente disso. Eu sempre instei o Florence, de que ele tinha um poder de voto, de carregar votos, dado o fato de estar inserido num contexto de muita gente, de projeção. Ele falou: “Meu tempo já passou. O que me compete agora é ajudar a escolher os melhores. Posso apoiar, ajudar, participar”. Mas ele, pessoa física, nunca se manifestou nesse sentido. O que foi uma pena, né? Num país tão escasso de valores sérios, uma pessoa do perfil e da formação dele seria muito bem-vinda.
Pode-se dizer que ele tinha uma ideia de país?
O que eu posso dizer é que ele era um idealista na questão agrária. Sempre foi um otimista incorrigível, no sentido de acreditar que cada vez ia ser melhor. Aquela história de celeiro do mundo ia se concretizar no futuro. Até por ocasião daquelas apostas que a gente fazia sobre qual ia ser o faturamento do setor e a tonelagem vendida, ele falava: olha, o Brasil cada dia consome mais, nós temos que nos tornar independentes. O Florence tinha uma esperança imensa em ver um dia o Brasil independente nessa área tão estratégica. Eu lembro que em determinado momento houve um enxugamento no número de empresas pequenas [que integravam a AMA Brasil]. Hoje tem cinco ou seis empresas que dominam o mercado. O Florence sempre se incomodou muito com isso. Ele achava que a segmentação, a pulverização de empresas chegaria lá na ponta do consumidor, do produtor rural. E essa concentração o incomodou, porque nós vimos dezenas de colegas nossos fechando suas empresas. Mas nunca vi ele desanimado, no sentido de que [ele achava que] esse caminho tem volta. Ele sempre falava, eu não esqueci, que a gente ainda ia ver o PIB do Brasil com 50% vindo do agronegócio. Hoje a gente já está em 40, né? Então esse idealismo dele me marcou muito. Até, às vezes, como a gente tinha liberdade de amigos, chamei-o de ingênuo, porque o poder econômico é muito grande, mas ele divagava profundamente [dizendo] que isso ia ter retorno, que ia voltar ao que era antes, milhares de pequenos produzindo muito.