Um líder em busca do diálogo e do entendimento
O empresário Nelson Reis, diretor do Departamento de Desenvolvimento Sustentável da Fiesp, fala sobre as lições deixadas por Florence
Como o senhor conheceu Carlos Florence?
Eu o conheço já da década de 80, então nós estamos falando aí de 40 anos, mais ou menos. Nessa época eu era executivo de uma empresa do setor de fertilizantes, e o Florence era sócio de uma empresa também. E nós nos conhecemos ali, numa relação de fornecedor e cliente. Esse foi um período relativamente curto porque logo em seguida ele saiu da empresa. E bem nessa época foi criada a Associação dos Misturadores de Adubos, a AMA Brasil, e o Florence veio a ser o seu diretor executivo. Eu diria: veio a ser a “alma” dessa associação. Eu, paralelamente, também desenvolvi uma atividade no ramo das entidades. Na própria Anda, onde fui presidente durante um período, também fui presidente do Sinprifert. E aí nós desenvolvemos essa relação dentro das entidades, interagindo nos temas que diziam respeito ao setor. Na minha condição de presidente do Sinprifert, tinha um certo conflito de interesses com a AMA Brasil.
Ah, é?
Sim, porque nós éramos produtores de matérias-primas, e a AMA Brasil representava os consumidores, né? Mas a gente desenvolveu essa relação sempre com muito respeito. E aqui é o primeiro destaque que eu faço do Florence: na sua qualidade de articulador e de agregador. O Florence não brigava. Você já deve ter feito outras entrevistas e vai fazer mais, e você não vai ouvir ninguém falando que teve um atrito, uma briga, que brigou com o Florence, que teve uma disputa, nada disso. Ele sempre era muito elegante. Naturalmente ele defendia os interesses da entidade dele, trazendo as posições dos associados, mas a relação sempre foi muito boa, muito respeitosa. E isso com o tempo foi fazendo com que nós ali nos tornássemos amigos. O Florence foi um amigo que eu cultivei ao longo dos anos. Mas nessa fase inicial das entidades o Florence… ele tinha uma habilidade muito grande em respeitar, entender as posições dos interlocutores todos, e com isso a AMA Brasil foi se consolidando. Nesse período da dupla George e Florence a AMA realmente deu um salto bastante importante, no respeito perante autoridades e perante outras entidades, que esse é o objetivo de uma entidade: defender os interesses dos seus associados e ter o reconhecimento nas várias esferas de interlocução, principalmente na área do governo. Isso eu acho que se deve muito, acho não, tenho certeza, se deve muito à atuação do Florence. Era uma pessoa que tinha o respeito desses interlocutores da área de governo pela sua qualidade, uma pessoa sempre muito transparente nos posicionamentos, muita franco e muito ético. Compromissos assumidos ele respeitava. Isso tudo fez com que a entidade acabasse sendo respeitada, tanto que durou, durou até agora, até o seu falecimento.
Florence se projetou fora da AMA também, não?
Ele passou além da AMA Brasil, extrapolou, passou a ter importância para todo o setor, todos os outros segmentos que hoje se congregam dentro da Anda. Foi importante por fazer toda essa agregação das várias entidades, de empresas, mostrando que os interesses comuns dos diversos segmentos eram maiores do que os interesses particulares. O Florence sempre assim atuou e trabalhou nesse sentido.
O senhor acompanhou todo esse período como dirigente e empresário?
Com o tempo acabei me desligando, não totalmente porque até hoje eu tenho uma pequena empresa de insumos pra agricultura, mas deixei a minha participação efetiva dentro do setor e passei a participar mais no âmbito da Fiesp. Sou hoje presidente do Sindicato da Indústria de Produtos Químicos de São Paulo, e na Fiesp acabei assumindo a direção do Departamento de Meio Ambiente, que hoje se chama Desenvolvimento Sustentável. Estou falando isso porque nessa situação eu desenvolvi outro tipo de relação com o Florence, que era nessa questão ambiental, uma questão que progressivamente veio assumindo maior importância não só nas empresas mas em toda a sociedade. Começamos aí uma interação muito próxima, eu tinha muitas conversas com o Florence sobre isso, ele sempre me consultava sobre temas específicos relacionados a ambiente e fertilizantes. Então a gente teve esse tipo de diálogo que continuou até agora, né? Dentro da Fiesp mesmo, nós temos lá o Departamento do Agronegócio, e o Florence teve uma participação muito ativa nesse departamento como membro da área de insumos para a agricultura. Então foi uma pessoa que desenvolveu um trabalho também fora do setor de fertilizantes, com outros interlocutores de vários setores da indústria e da agricultura.
Este seria o seu maior legado?
Olha, fora a figura dele, o respeito e o conhecimento de todo o setor em todos os aspectos, quer sejam regulatórios, quer sejam técnicos, ambientais, o Florence deixa como legado principal a figura de um grande agregador do setor. Em momentos críticos, de diferenças e tudo, o Florence sempre entrava com aquela postura de agregar, de trazer as pessoas para o diálogo, entende? Então, dentro do segmento específico dos misturadores isso é muito claro. O trabalho que ele fez de trazer toda a categoria pro centro, pro entendimento, e pro desenvolvimento de um conjunto de ações visando sempre o interesse desse segmento… e eu estendo isso aos demais segmentos, porque ele foi muito importante na construção, por exemplo, numa última negociação intensa que houve aí na questão do imposto. Nós sempre tivemos uma divergência histórica dentro do setor com respeito ao ICMS. Quer dizer, nós na categoria de produtores, e a AMA Brasil na categoria dos consumidores. Era uma divergência de décadas. Como produtores achávamos a situação injusta o produto importado não pagar ICMS, enquanto o produto nacional pagava. Nunca tivemos sucesso em mudar esse quadro, foi uma das minhas grandes frustrações. E agora se chegou ao entendimento, recentemente, de compor esses interesses. E o Florence foi uma pessoa importante nesse momento, ao levar a questão e discutir com a categoria dos misturadores, e depois com os demais segmentos, fazer essa composição. E se chegou a um bom termo. É mais um exemplo do espírito conciliador do Florence. Conciliador no sentido positivo, de trazer as várias posições à mesa e se procurar uma solução que fosse boa pra todos.
Isso é uma unanimidade no setor.
Sim. Fora a pessoa, né? Uma pessoa fantástica, simpática. Por exemplo: nas reuniões da AMA, mensais, vinham pessoas do Brasil todo, e na véspera da reunião havia um jantar. E pra minha alegria, eu era o convidado de fora do setor. Toda vez que havia o jantar ele me ligava e dizia: olha, vamos ter o jantar na segunda-feira, e você é o nosso convidado.
Que outras características marcantes o senhor destacaria?
Outra característica dele é que era um excelente ouvinte. Mais do que falar, ele ouvia. Ouvia muito. E naturalmente esse ouvir, principalmente as pessoas fora do segmento dele, fora dos parceiros, ele levava, reunia fora e levava pra dentro das entidades com esse olhar de observador da cena.
Curioso é que isso é exatamente o oposto do que nós temos hoje, tanto na política quanto na vida social e mesmo empresarial. Essa incapacidade de ouvir, essa necessidade de fazer julgamentos prévios. Ele passava muito longe disso, né?
Muito longe. Era uma pessoa discreta, não polemizava. Tinha pontos de vista, tudo, mas era discreto. Sabia o momento de ficar quieto. Eu presenciei muitas vezes embates assim, em que ele tinha o que falar, e preferia não falar. Depois, várias vezes ele me dizia: não, ali não dava pra falar, o clima não era pra isso. Então ele se recolhia. Acho que isso foi a grande contribuição que ele deu ao segmento, porque ele levava essas impressões todas, era a função profissional dele. Valia muito essa personalidade dele de saber ouvir e não polemizar, porque às vezes quanto mais você polemiza mais leva a coisa pro ponto morto, sem saída, e ele não fazia isso.
De toda essa luta levada por Florence e seu grupo, tem algo que ainda não foi conquistado e que precisaria ser tocado pelas novas lideranças?
Acho que avançou bastante nesses últimos anos. Agora vejo isso mais de fora, mas o meu sentimento, inclusive com essa negociação aí do ICMS, que foi um marco, vai unir mais o setor todo.